ALBERTO BITTENCOURT - Palestrante, motivador, consultor, escritor, biógrafo pessoal

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sábado, 1 de agosto de 2020

NOVENTA ANOS DE IRACEMA SEIGNEUR LEZAN


NOVENTA ANOS DE IRACEMA SEIGNEUR LEZAN
 Alberto Bittencourt - abril de 2002.


IRACEMA, aos 92 anos, em Teresópolis



21 de abril de 2002, sexta-feira da Paixão, Teresópolis. A família reunida para comemorar os noventa anos de minha querida sogrinha, mãe da Helena, IRACEMA SEIGNEUR LEZAN.

Eu e Helena, Bruno e Millena viemos do Recife. Cris e João Victor de Salvador. Amanhã, sábado, haverá uma festa no sítio, hoje, pertencente à Eliane e Anníbal, que adquiririam a parte dos irmãos na herança. Todos os parentes, sobrinhos, primos, estarão presentes. Será um momento de reminiscências, tempo de homenagear, de agradecer à Deus por ter-nos dado a dádiva de usufruir de sua presença, de termos sua energia, de tê-la aqui conosco, alegre e saudável, a transmitir amor e felicidade. Noventa anos, uma longa estrada foi percorrida, uma estrada pavimentada de amor.
           
Tudo começou aqui mesmo em Teresópolis, anos quarenta. A família Seigneur costumava passar temporadas no Hotel Malibu. Num domingo a jovem professorinha passeava de bicicleta pela praça, quando aconteceu uma queda, não estou bem certo. O jovem engenheiro, chegado da França veio em socorro. Foi o destino que se cumpriu. A união das duas almas gêmeas que se encontraram. O futuro de alegrias e felicidades estava traçado. Vieram os filhos. As tarefas da mãe e da professora se conciliaram, se complementaram. Com energia, sem perder a ternura e o carinho, Iracema, como ninguém sabia conduzir a classe e a família. "Basta arregalar bem os olhos que os alunos ficam quietos", dizia às filhas professorandas. E assim foi.                                                             
Nos anos sessenta nós, agregados, chegamos. Eu e o Nilson. Anos Dourados. Os rapazes no Colégio Militar, as moças no Instituto de Educação. Antônio Cláudio no Colégio Militar já dava um bocado de alteração. Antônio, sob o regime militar é o mesmo que querer domesticar um lobo selvagem. Não dá, é simplesmente impossível. Terminou, como não poderia deixar de ser,  expulso a bem da disciplina, depois de mandar o General Comandante. praquele lugar.   Jean e Iracema procuravam levar tudo sempre na base do diálogo, do convencimento, da razão.

No terraço da casa da Marechal nós namoramos. Eu, Helena, Nilson e Denise. Às dez horas começavam a fechar as janelas, a luz piscava. Claro, não podia namorar no escuro, nem depois das dez.

Os almoços dos domingos eram memoráveis. Inesquecíveis os quitutes da Adélia. Discussões acaloradas, temas geralmente políticos. O pivô das polêmicas era sempre a Eliane. Temperamento contestador, já despontava nela o espírito de liderança. Participava ativamente dos movimentos reivindicatórios de sua classe das professoras. "Contra o salário de fome", dizia um de seus manifestos. Sabiamente, o dr. Lezan ponderava que uma classe numerosa como a dos professores jamais teria um bom salário. Eliane incorporou o ensinamento e se tornou universitária.

Naquele tempo a família costumava passar as férias no saco de São Francisco. Lembro-me bem. Uma kombi recém-lançada substituíra o velho Ford dos anos quarenta. A partida para São Francisco era uma verdadeira epopéia. A Kombi entupida até o teto de gêneros, objetos, roupas, utensílios, só sobrava o lugar do motorista. A família ia na barca da Cantareira, enquanto ou Jean ou Iracema conduziam o veículo na barcaça de automóveis. Três horas na fila era o mínimo que esperavam para conseguir atravessar a baía de Guanabara. Bons tempos aqueles dos verões no saco de São Francisco. A bossa-nova despontava. A turma se reunia em torno de um violão, ao luar, a entoar as canções de sucesso internacional: "Desafinado", "A Barca", "Vento"... Em casa, a família se deslumbrava em torno de um Jean Lezan narrador de histórias do Velho Testamento. Incrível como ele conhecia em profundidade os assuntos da Bíblia. Iracema, profundamente religiosa se maravilhava, sentia um amor ainda maior, se é que isso fosse possível. Foi lá no saco que surgiram os grandes romances. Nilson/Denise, Paulinho/Maira. Ali consolidou-se o meu amor por Helena. Antonio Cláudio saiu incólume para sorte de Cristina, apesar do assédio constante, explícito, das menininhas da região. Todas queriam namora-lo, com incentivo das respectivas mães. Acho que Antonio Cláudio soube tirar bom proveito.
Vieram os casamentos, os netos. São Francisco ficou para trás. Foi substituído pelo sítio de Teresópolis.

Nesses tempos do Movimento Estudantil, do AI-5, a Universitária Eliane tornou-se a representante na família da esquerda revolucionária armada, cujo mentor era um certo frei, colega de classe, irmão jesuíta, chamado Tony. Uma vez, eu, tenente do Exército Brasileiro, fui trancado pela Eliane no banheiro da Marechal, e ela só abriu depois que eu gritei três vezes: "ABAIXO A DITADURA!"  E vizinho morava um capitão da linha dura, que ela queria que me ouvisse gritar.

Eliane carregava no fusquinha da família, panfletos subversivos correndo um sério risco. O dr. Lezan chamou para uma conversa:
 "Minha filha, eu sou estrangeiro, o carro está em meu nome, se a pegam com esses panfletos, além de você ser presa, eu posso ser deportado do Brasil".
Parece que prevaleceu a razão.

Eu fui morar em Resende e Nilson em Petrópolis. Depois fomos para o Recife, em janeiro de 1972. Orgulho-me de dizer, que, graças a Deus, nesses 31 anos de Nordeste nunca deixamos de vir ao Rio, pelo menos duas vezes por ano. Vieram os netos, os bisnetos. Todos impregnados desse amor transbordante, irradiante que emana do coração de Iracema. Todos levamos a sua marca, a marca da solidariedade, do amor ao próximo, da profunda devoção e amor a Deus, do trabalho na igreja, em prol dos menos favorecidos. Todos recebemos a força da sua fé, da sua religiosidade. Creio que aí está o segredo da sua juventude. É o trabalho voluntário, a prestação de serviço, a mão estendida, sempre disposta a ajudar, a amparar, não importa a quem. É a solidariedade, a compaixão, a amizade, a devoção à Deus, à igreja, a família. Está provado cientificamente, isso rejuvenesce. Aí está o segredo de sua juventude aos 90 anos, com a energia e o vigor de uma fortaleza, a lucidez de um sábio conselheiro, o raciocínio claro, límpido, a memória intacta.

Descobri o segredo da felicidade olhando para Iracema, observando suas atitudes, seu estado perene de alegria. Lembro-me da história, que li num livro sobre a felicidade, intitulado: "Le Bonheur, Désespérément" de André Conte Sponville.
Dizia ele que um discípulo perguntou a Buda:
"Mestre, como é possível que esses milhares de fiéis, que nada possuem a não ser a roupa do corpo que mais parecem trapos, que mendigam o dia inteiro por um grão de arroz, como é possível que essas pessoas sejam felizes?
E Buda respondeu:
"Essas pessoas, que nada possuem a não ser restos de roupas, que mendigam o dia todo por um grão de arroz, essas pessoas não têm nenhuma esperança quanto ao futuro, tampouco vivem das reminiscências do passado, e por isso elas são felizes".
É o exemplo de vida, a lição que recebemos de você, Iracema. Você não se atém às lembranças idas e vividas, não vive presa às recordações felizes, não tem erros do passado para ficar se lamentando. Para você os erros do passado, se é que os houve, são oportunidades de aprendizado. Tampouco você vive de expectativas do futuro. Você vive para o momento presente, para o aqui e agora. Você desfruta de cada segundo da vida, com plenitude, com intensidade. Esse é o segredo da sua felicidade, é a lição de vida que você nos dá.

Reverenciamos neste momento a memória de todos os entes queridos que passaram por nossas vidas, deixaram tantas saudades e que certamente, também estarão aqui, unidos num só pensamento de saudação e agradecimento.

 

 

                               




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