A PRIMEIRA CHAMA
Alberto Bittencourt - 26 dez 2012
Nos anos do regime militar em Duque de Caxias
Área da Fábrica Nacional de Motores – Xerém
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Foto enviada pelo comp Antônio J. C. da Cunha, do RC Duque de Caxias |
Recém formado pela Academia Militar das Agulhas Negras, ainda no posto de aspirante a oficial da Arma de Engenharia, já no comando de um pelotão, fui designado em abril de 1964, para manter a ordem e dar segurança à Fábrica Nacional de Motores. Situada no distrito de Xerém, município de Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro, no sopé da serra de Petrópolis, limite da baixada fluminense, a fábrica vivia momentos de grande tensão e agitação que chegavam a afetar a produção industrial.
Ali se fabricava o famoso caminhão FNM, mais conhecido como Fenemê. Naquele tempo, a quase totalidade do transporte rodoviário de carga no Brasil era feito pelos caminhões Fenemês. Valentes, robustos, possantes, esses veículos varavam o país de ponta a ponta, dominavam absolutos as estradas de terra e lama, levavam o progresso aos quatro cantos do país. Ainda não haviam chegado os Mercedes, Volvos, Scânias, Fords, Chevrolets, Volks, tudo era feito pelos Fenemês, produzidos, para orgulho nosso , por uma fábrica genuinamente brasileira, do governo, a Fábrica Nacional de Motores.
Originariamente, muito antes da EMBRAER existir, a Fábrica Nacional de Motores fora construída para fabricar motores de avião, com o fim de garantir mercado de trabalho para os engenheiros aeronáuticos formados pelo ITA. Em seguida, foi transformada em fábrica de caminhões. Anos mais tarde foi vendida para a Alfa Romeu que, por sua vez, a vendeu para a Fiat que, posteriormente, a fechou. Ali se fabricou o famoso carro, top de linha, marca Alfa Romeu, modêlo JK.
Numa noite escura e fria, às duas da madrugada, eu rondava de jipe pelos postos de sentinelas, acompanhado apenas do motorista. Ao contornar a fábrica pelo lado de fora, notei uma sombra fugidia a se esgueirar no escuro, junto aos muros. A chuva fina e cortante dificultava a visão. A figura de pronto despertou-me suspeita. Com cautela, fui me aproximando. Aos poucos, foi se delineando um vulto enrolado em panos dos pés à cabeça. A cada passo trôpego, seu corpo estremecia. Encandeada pela luz dos faróis, divisei um rosto de mulher. Transportava nos braços um volume amorfo, indefinível e chorava.
Para onde vai?, perguntei.
Estou indo para casa, respondeu entre soluços.
O que aconteceu?
O hospital não quis receber o meu bebê.
Por quê?
Por quê?
Meu bebê morreu.
Fixei o olhar com atenção. Envolto nos trapos, havia um bebê de no máximo dois meses. A chuva fria apertava. Ofereci-lhe carona.
Só então verifiquei que o corpo franzino, pequenino, jazia inerte nos braços da mãe. Certamente essa fora a razão pela qual o hospital não quis recebê-lo. A criança já estava sem vida quando lá chegou.
Meu bebê morreu dormindo, sufocado, disse a mulher.
No pequeno barraco em que viviam pude constatar a dimensão da tragédia humana. Espremidos em apenas um vão insalubre e mal ventilado, moravam a mulher e quatro filhos, idades entre 2 meses e 4 ou 5 anos. O chão de terra batida, as paredes e o teto de restos de tábuas, pedaços de zinco, misturados com plástico e papelão. Para chegar ao pequeno fogão no fundo do quarto, tinha que levantar um estrado. O bebê morrera asfixiado, porque todos dormiam embolados naquele arremedo de cama.
Tal aconteceu em 1964. O Brasil tinha uma população de apenas 80 milhões de habitantes. Os jornais da época já noticiavam constantemente que: crianças eram vítimas de deslizamentos de barreiras, pois moravam em lugares perigosos; bebês eram roídos por ratos, porque viviam em lugares infectos; crianças morriam de disenteria por falta de água potável; esgotos serpenteavam a céu aberto, nas chamadas valas negras; padrastos estupravam enteadas, habitantes de um só vão; adolescentes eram abusadas por irmãos mais velhos, porque dormiam todos na mesma cama. Nas guerras, nas calamidades, nos cataclismos, as primeiras vítimas são sempre as crianças.
Hoje, quase cinquenta anos depois, nossa população pulou de 80 para 200 milhões, e o que mais aumentou foi justamente essa camada mais pobre, excluída, despojada e desprovida de tudo.
O que fazer?
O fato, ocorrido na minha juventude, acendeu em meu coração a primeira chama, despertou a vontade de servir, de fazer algo que pudesse mudar esse estado de coisas. Anos depois eu encontrei no Rotary o caminho que buscava.
O que fazer?
O fato, ocorrido na minha juventude, acendeu em meu coração a primeira chama, despertou a vontade de servir, de fazer algo que pudesse mudar esse estado de coisas. Anos depois eu encontrei no Rotary o caminho que buscava.